Viva séries – Luke Cage

(Imagem reprodução: Netflix)

Para quem é fã de histórias em quadrinhos, Luke Cage pode não ser nenhuma novidade.

Criado em 1972, por Roy Thomas (que introduziu Conan nos quadrinhos dos EUA), Archie Gordon (o “mais amado dos editores”) e John Romita (o criador do Wolverine), foi o primeiro super-herói negro a ter uma revista própria – bem no auge dos filmes Blaxplotation (filmes que tinham como protagonistas e público-alvo negros norte-americanos – pense-se em Schaft, de Gordon Parker).

Mas, para quem não é um profundo conhecedor, a quase novidade pode guardar algumas boas surpresas.

A primeira temporada da série estreou em 30 de setembro de 2016 e, apesar de todo alarde, teve mais baixos do que altos, a principal crítica está relacionada ao número de episódios (13) que fez com que a história se arrastasse em voltas insípidas, demorando demais para dizer a que veio e engrenar.

Num certo sentido, já era de se esperar, afinal, introduzir um herói para um novo público, requer alguma dose de tempo. Isso talvez justifique também o requinte buscado na ambientação, capaz de proporcionar ao mais indisposto espectador a sensação de estar realmente dentro do Harlem, a junção precisa entre fotografia e música acabou dando à série o verniz necessário para compensar uma ou outra falha, que puderam passar despercebidas à maioria – embora, não aos mais atentos, mas servindo para desviar a atenção do essencial. Para quem não viu, vale a pena ver e tirar as suas próprias conclusões.

Eis que, após fazer um bico em Os Defensores, em 2017, Luke Cage volta com força total, em sua segunda temporada – que estreou no dia 22 de junho na Netflix.

Após limpar seu nome, Luke Cage (ainda interpretado por Mike Colter e ainda sob a batuta do produtor Cheo Hodari Coker) volta ao Harlem para levar sua vida, agora como uma celebridade local, com direito a muitas selfies e até um aplicativo que dá sua localização.

Nessa segunda temporada fica um pouco difícil definir um antagonista para Luke, embora Mariah Dillard (ou Mariah Stokes, se preferirem) e Buschmaster possam vez por outra tomar a frente, o fato é que as disputas ganham uma maior amplitude, ressaltando os conflitos entre gangues e o enraizamento da criminalidade em fundamentos mais complexos do que um mero maniqueísmo.

Contudo, ao mesmo tempo em que vemos as intrigas se desenvolvendo nos bastidores do poder, muito mais intensas do que disputas físicas e tiroteios, também somos levados a nos aproximar do personagem principal – se é possível dizê-lo – por um outro viés que, por falta de uma palavra melhor, chamarei de “humano”.

Luke Cage é confrontado com alguns dilemas pessoais com os quais as suas habilidades não parecem ser muito efetivas, esse talvez seja um dos pontos mais interessantes, a despeito de ser um super-herói, ele também está sujeito a alguns questionamentos típicos da existência, como o estabelecimento de um propósito para sua vida, algo que o justifique, além de estourar bocas de fumo e espancar criminosos.

Esse conflito de si consigo mesmo fica evidenciado a partir da relação de Luke Cage com Claire Temple, que mais do que representar uma possível vulnerabilidade dele a ser explorada pelos inimigos, o confronta nas partes onde ele é vulnerável: suas relações afetivas, o que traz à tona alguns de seus fantasmas do passado, principalmente a figura de seu pai, James Lucas (que só não deve ter sido mais explorado porque o ator Reg E. Cathey faleceu).

Aliás, é justamente num dos diálogos mais expressivos da série em que o mote dramático aparece de maneira mais clara, numa conversa entre Claire e James Lucas: num dado momento, ela o procura para falar de um amigo que está com problemas porque perdeu seu propósito (no caso, Luke) e ele lhe pergunta se ela própria tem um propósito, antes de conseguir ajudar seu amigo a encontrar um.

A partir daí e após uma acalorada discussão com Luke, Claire parte para se reencontrar com suas raízes e quem sabe um propósito, o que deixa Luke sem outra alternativa além de refletir sobre si mesmo e suas reais vulnerabilidades, em suma, ele é invulnerável “pelo lado de fora”, porém, não “pelo lado de dentro” – coisa que é dita a Luke com praticamente todas as letras pela filha de Mariah, Tilda.

Falando em Tilda, ela será outra personagem que evidenciará a mudança de foco dos conflitos dos personagens, ao menos no que diz respeito à Mariah, sua mãe, representando um papel parecido com o que Claire representa para Luke, sempre questionando a respeito de motivações e suas justificativas, o que poderia se resumir na pergunta: os fins justificam os meios? Afinal, é válido que Mariah se utilize de recursos advindos de fontes escusas para tentar produzir algo de bom? E será que Mariah conseguirá manter o controle da situação sem se deixar levar e sucumbir?

Mesmo o grande adversário de Luke na temporada, Buschmaster, tem lá os seus dilemas, suas crises existenciais que vão além de uma possível solução imediata.

Em suma, o que temos na segunda temporada da série são dois plotes que se complementam, um que se poderia chamar de “macro” (as disputas de poder e os meios utilizados para isso) e outro de “micro” (relacionado aos dilemas pessoais dos personagens).

Á parte isso, a relação fotografia e música continua impecável, em alguns momentos chegando até a dispensar qualquer espécie de diálogo, a produção de sentido produzida pela imbricação desses dois aspectos, quase por si só, já vale a experiência (são mais 13 episódios) – musicalmente, a série mereceria um capítulo à parte, sobretudo pelo diálogo que propõe entre novidade e tradição (um tema que está nas entrelinhas de toda a história).

Para quem conhece ou não conhece, Luke Cage vale como obra autônoma, um trabalho bem feito que anda com as próprias pernas.

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